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Nós, que somos bichos, não podemos comprar Ecosport.

Mas temos todo o direito – e dever – de não sujar as nossas patas com humanos de quinta categoria.

Eu disse pra Lôra: meus dentinhos tão branquinhos, naquela carne mole e encardida, na-na-nina.

Pensei em dar uma lição naquele pitboy paraguaio, mas até um cachorro com gripe ficaria nauseado com a murrinha.

Além de ensebado, ele tem caspa e fala cuspindo. Eu, hein.

Comer meio rato é uma coisa. Rato inteiro, outra bem diferente.

Registrada agressão contra Sr. Fulano. Ele foi atingido por uma tábua de cortar carne por sua mulher, que alegou estar cansada dos atrasos do companheiro para o jantar.

Agora, imagina quando o sujeito chegar hoje ao trabalho. Foi em rede ‘nacional’, na Rádio Rural.

Barba de aluguel

Eu estou cansando de ficar em casa. Tá certo que tem quintal, posso acompanhar o movimento da rua, patati patatá, mas tenho saudades de São Paulo.

Dançar forró com a Lena, passear com a Deca, Mônica e aquelas garotas doidas… Havia mais opções.

Lôra anda fazendo algo meio complexo, ou talvez o seja (só) para ela, que é loira. Passa o dia fora, às vezes nem aparece na hora do almoço.

Não larga o laptop. Noite dessas, pegou no sono, depois de horas teclando compulsivamente, como se recebesse em euros por cada TEC. Dormiu ali, toda torta, mão sobre o teclado.

A mestiça, como sempre, só aguardou o suspiro mais longo para subir na alcova.

Lôra virou de um lado, de outro, e começou a correr os dedos pelo teclado.

Olhei de relance. A mão abria, fechava, abr…

Merda!!!

É psicografia? Pelo amor, eu tenho medo dessas coisas!

Mestiça chegou mais perto e passou a lamber os dedos da Lôra, cuidadosamente. Cena de cinema, que tive de interromper por dois motivos.

1) Alguns minutos a mais e eu teria crise de diabete, com tanta ‘doçura’.

 2) O laptop acabaria por se afogar. Na melhor das hipóteses, Lôra estava sonâmbula e equivocada, tomando o teclado pela barba de algum cabra. Poderia babar, beijar, apertar…

ECA!

A que ponto chega a carência feminina!

Começou o carnaval, e, com ele, o Cristoval. É numa praça aqui perto. O slogan: “troque o abada por abadeus”. Tem missa com o bispo e depois show de uma cantora que é a cara da Mara Maravilha. Na orla, é carnaval profano. Pró significa a favor, não é? E fano? Esse carnaval é a favor de quem? Eu queria ir! Tomei até banho, certa de que ia rolar. Hoje pegaria ao menos um ratinho. Na praça tem, contei, não? Tem rato e manga. O Igor prefere fruta, mas ele é um husky. Quadragésimo e sei lá qual lugar no ranking da inteligência. Equivale àquela outra espécie de mamíferos quadrúpedes, que, como meu irmão, tem as orelhas para cima e é ‘de trabalho’. Para você matar a charada: os tataravôs do Igor puxavam trenó na neve. Essa outra espécie animal puxa carroça. Sacou? O QI é o mesmo, apesar das funções distintas. Mas, voltando aos ratinhos. Eles brincam no forro, e agora que estamos mais à vontade, todos nós, dão guinchinhos curtos: ic-ic-irrc. Nos primeiros dias, Lôra achou que eram morcegos, e nem ligou. Pode? Horror. Depois percebeu a categoria dos inquilinos, quando eles passaram a fazer sons mais… Guturais. Eu e Igor pensamos se tratar de filhotes. Lôra apostou num casal alardeando seu amor para o mundo (deve ser carência afetiva. Dela, claro). Mas ela tem se cansado muito com uma reforma, de modos que fomos dormir… Com as galinhas. Sem carnaval, sem show da Mara, sem pega-pega com ratinhos. Nhé.

Carnaval!

Confidenciei à mestiça: é bom mesmo que o Mag chegue logo. Mais dia, menos dia, precisaremos de um advogado.  Depois de dias sumidos da orla – a chuva não deu uma trégua nessa semana! – dávamos o nosso passeio noturno. Na paz.  Bem, rolavam aquelas baboseiras de sempre, qual é o telefone do seu cachorro? (só uso e-mail, seu dinossauro), rá-rá parece um urso (e você, uma anta), como está gordo! (meu próximo papel em Hollywood será Buda, idiota). Nada inédito.  O calçadão estava bem mais vazio do que ‘o chão’. Vocês devem se lembrar daquela discussão torpe, outro dia, com o estagiário da prefeitura. Sabem do que estou falando. Lôra observou o movimento (ou a falta de), até porque não havia mais nada para olhar.   Seguimos o passo até sermos cercados, novamente, por enviados do poder. Um casal, dessa vez. Com o mesmo uniforme – a camiseta vermelha – como convém ao partido que representam.  – A senhora… – Senhorita. – A senhorita… – Não. Casal surpreso. – A senhora…rita deve andar no chão… – Oh! A tinta invisível está vencida! Você pode ver nossa canoa? Lôra olhou para baixo e mexeu os braços, fingindo-se chocada. – A senhora… ita tem de andar o chão com os cachorros… Ela poderia ter levado aquele diálogo adiante, mas estamos na semana do mês em que a tolerância zero dá o tom. – Seguinte, seu fiscal: cadê a lei? Mostra aê, ou vou continuar caminhando nas nuvens com os dois. Lôra rosnou, com a mão na cintura.Lôra, Lorinha, te toca, eu murmurei. Recorrer a figuras de linguagem por aqui não levará a nada. – A senhora… ita tem de usar focinheira nesse… animal. – É um cachorro. – Pois bem, no cachorro. – Que cor? Hu-hu! Muito boa, Lôra! O casal-enviado-do-poder entreolhou-se por uns dez minutos, desconcertado, como se assim fosse possível encontrar mais facilmente alguma resposta.  Mamãe não esboçou a menor reação. Manteve a pose da qual tanto me orgulho, gélida, impassível, nariz arrebitado apontado para a lua, queixo desafiador, olhar fulminante. Ela fica linda brava.  Colei em sua perna, para aumentar o respeito. Fosse eu um boxer, e não um husky, levantaria as patas dianteiras, provocador: Veeeeemm. Golpearia sem dó o fiscal e a fiscala. Um e depois a outra, a outra e o um, o um… O homem tentou retomar o controle da situação. – Senhora… ita, estamos apenas conversando. – Eu não estou conversando. Estava passeando com os meus cachorros quando vocês nos atrapalharam. Pensa que é fácil manter o porte físico desse animal? Sabe o que são horas de caminhada por dia, para que o tônus muscular permanece rígido, os reflexos rápidos?… Reflexos? Ahhh não! Boiolices, na-na-nina, nem rápidos, nem demorados, tá pensando?! – Tragam a lei amanhã e levarei para os meus advogados. (Agora vem a melhor parte) – Amanhã é carnaval e tem desfile e … – Vocês não estarão aqui? É para isso que eu pago os meus impostos? Para ter de esperar dias por uma lei?? Eles tentavam balbuciar alguma coisa quando Lôra deu o cheque-mate. – Antes de Finados, entendeu? Eu quero essa lei antes de Finados! Caso contrário, n-i-n-g-u-é-m nos tira do calçadão. – Si-i-i-i…m                                                                                                                                                                                                                Viramos as patas e seguimos o passeio.  Percebam, por favor, a generosidade da minha dona. Se nada mudar durante o ano, e acho que essas datas são meio fixas, não? Finados cai em novembro. As always.  Creio que ela quis dizer quarta-feira de cinzas. Mas, pensando bem, finados são cinzas. Só muda o dia, ué. Dá tempo até para definir cores para as focinheiras. Se Lôra fosse capaz de contar uma piada inteira – prova e tanto de boa memória, que o Alcyr e o Caiado têm – podia até ser atriz.  Então, não precisaríamos mais de advogado, mas de um empresário. 

Falta do que.

Segunda-feira. Estávamos no quintal dos fundos. Há horas. Sem nada para fazer. As galinhas, que habitam aquela área (infelizmente, em espaço demarcado e cercado) ressonavam desde o pôr-do-sol.  

O tédio era tanto que eu e o Igor gastamos horas refletindo sobre expressões idiomáticas, tais como dormir com as galinhas 

O gordo insistia: trata-se de agarrar o poleiro com os dedos dos pés, equilibrando (debilmente) o desajeitado corpão ao lado das penosas (Os dois adjetivos negritados acrescentei por minha própria pata, para dar mais veracidade ao depoimento.) 

Respirei fundo antes de retrucar: dormir com as galinhas é uma referência ao tempo, meu bem. É quando se dorme cedo, como esse bando de inúteis.  Usei de delicadeza, pois o colega sofre de melindre siberiano, magoa-se com o tom das palavras. Coisa de veado, cá entre nós, que começou depois que mamãe sumiu com as bolas dele. Mas essa é outra história. 

Era esse o quadro, enfim. Nada para fazer. Comecei a sentir uma vontade incontrolável de me divertir. Algo como…uma brincadeira coletiva.

PEGA-PEGA! Isso, isso! Gênio! Eu pegaria as galinhas! Não ia ter muita graça, verdade, pois elas estavam e pijama, mas… E daí? 

Conferi as horas. Passava das oito da noite. Lôra chegaria com muita fome, e eu poderia oferecer-lhe uma suculenta antecoxa. Meu moral iria para as alturas. Sim, pois acho que ela se zangou na investida anterior porque tracei a galinha de maneira compulsiva. Em minutos, o que sobrou foi bico, penas e rugas (que chamam, também, de pés-de-galinha).  

Sem falar no bônus: inclusão social. Eu, Igor e as galinhas, na maior integração, numa incrível atividade coletiva, mostrando o que é uma equipe que respeita as diferenças. (Leia-se: Eu sou maior do que você e vou te comer numa bocada só. É a lei da selva, fo-fa).  

Para botar Esopo no chinelo, percebe? 

Eu esquentava as patas para dar início à diversão quando Lôra chegou. 

Isso são horas? – resmungou Igor, agindo como chefe da família, mas, no fundo, lamentando a merenda perdida. 

segue…

Passeios na orla são os meus preferidos, ainda que reclame do pique da Lora e da mestiça. Volto para casa me arrastando, mas lá, mantenho a pose. Até para não decepcionar meus fãs: elogios acontecem o tempo todo. Sou o único husky branco na cidadela, e, claro, o cachorro mais carismático da Amazônia.  

Hoje não foi diferente, e o calçadão estava bombado. Final de semana. Que fique claro, no entanto, que por mais que a cidade esteja ‘lotada’, a área ‘per capita’ é bastante generosa. Nada de gente se esbarrando, pelo contrário.  

Fomos interceptados por um sujeito com camiseta da prefeitura. 

Seus cachorros são grandes, a senhora tem de andar ali, no chão. O infeliz não poderia imaginar onde estava se metendo. 

Aqui não é chão? – retrucou Lora. 

É calçadão. 

– Como a prefeitura define chão? E calçadão? 

– Senhora, é que seus cachorros são grandes. 

– Qual é o tamanho máximo de cachorros que podem andar no calçadão? E onde está escrito? Qual é a lei? Blablablablablabla….  

Deitei para descansar. Estava estabelecida a confusão. Lora não abriria mão de um embate, ainda mais quando o que estava em jogo era nosso direito de ir e vir.  

Como era de se esperar, o homem não encontrava argumentos para rebater o afiado discurso sobre liberdade, capaz de dar inveja à Princesa Isabel.

Lora se empolgava cada vez mais. Aquilo começou a me entediar. Estava com sede, cansado. Queria ver os gols da rodada. Teve até clássico em São Paulo, jogo do Coringão. 

Levantei, ergui a pata e encharquei a calça do fiscal com minha urina quente e fétida. 

Seguimos a caminhada. Pelo calçadão.

Sara Lee

Lora teme por nossa fama na cidadela. Dois homens mordidos em menos de dez dias. Coisa do Igor. Eu, a mestiça, não me sujo por tão pouco. Tomo conta da casa, lato para todos os transeuntes, motos, bicicletas. Corro para pegar urubus, garças e barcos. Felinos, os meus prediletos, ainda não tive a pata, mas é questão de tempo. Já vi iguanas no quintal, pretendo experimentá-los em breve. 

Estava muitíssimo bem na fita. Até hoje. 

Tomei banho pela manhã – contrariada, mas ao menos não fugi correndo ensaboada e pulei no sofá, como o branco.

Secava meu sedoso pêlo ao vento, na varanda, e observava o movimento na rua, quando a Lora nos ‘remanejou’ para a cozinha, onde, para variar, ela esfregava tudo.  

Um parêntese: não entendo essa súbita mania de limpeza. Será que é TOC, aquela parada do Roberto Carlos? Porque parece que ela procura ouro, tamanha a dedicação. Súbito, o cacarejar. Levantei as orelhas, atenta.

Novo ruído. Sai em disparada para o quintal. Lá estava ela, a estúpida penosa sem noção, a mesma que havia me provocado semana passada, desfilando sobre a cerca do improvisado galinheiro.

O instinto caçador falou mais alto e desatei a correr, assoviando a música do Ultraje a Rigor: “eu tinha uma galinha que se chamava Sara Lee, um dia fiquei com fome, e tracei a Sara Lee…”  

Cauuuuu, párararararaaaa!!! – a Lora gritou. Saiiiiii galinha, sai! Igor, nããããoooooo!!! 

Peguei logo a bípede pelo pescoço, porque com o branco na área, desajeitado como é, acabaria por ajudar o almoço a pular para dentro do cercado.  

Galinha a cabidela, u-hu, como sonhei com esse momento! Sublime, no ponto, quentinha!  Lora permaneceu estática.  

Quer um pedaço, mamãe? O peito, talvez, que é light?  

Não cheguei a pronunciar a frase. Seu olhar horrorizado me dissuadiu de compartilhar a refeição. Minha dona, decididamente, não sabia o que fazer.  Igor quebrou o gelo, aproximando-se do galinheiro.

Foi o suficiente para que ela nos colocasse de castigo.  

O corpo 

Meia hora depois, Lora permanecia ao lado do corpo. Esses humanos têm comportamentos sinistros. A carne esfriando e ela ali, num velório solitário. Vai acender vela e pôr flores, também? Fala sério… 

Depois, percebi comovida que ela, simplesmente, não sabia o que fazer. Se tivesse dado alguns minutos, eu já teria resolvido. Meu estômago deu um pulo de satisfação com tal pensamento. Talvez se eu a lembrasse quantos cachorros sem dono passam fome nas ruas e tal… Pecado desperdiçar comida em pleno século 21. 

Mas quando, como dizem por aqui. A galinha foi para o saco preto, depositado na calçada, endereçado a coleta de lixo. Dia seguinte, porém, a galinha preta, e só ela, sem saco nem nada, apareceu no meio da encruza.

Ao menos teve alguma utilidade.   

Sangue latino

A noite corria solta e era coisa linda de se ver, a disposição do amigo. Que, efetivamente, não resolveu muita coisa nos eletrônicos, mas Lora parecia estar curtindo a conversa e tal.  

Relaxei, aconchegado aos pés do sujeito. Em alguns minutos eu já sonhava com ossos gigantes, suculentos e enfileirados, todos à minha disposição. Um, dois, quinze, uau! Respirei fundo para impregnar as narinas com o aroma de carne fresca.  Ajeitei o guardanapo no colo e abri lentamente a boca para saborear o primeiro acepipe… Hummmm. Fechei os olhos e cheguei mais perto das iguarias.

Foi então que tudo aconteceu.  

AHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! 

De novo, não! Como chefe de família, eu só tinha uma coisa a fazer. Salvá-la de um acidente ou de qualquer coisa que comprometesse terrivelmente os nossos passeios diários. Um arranhão, uma torção no tornozelo, ou até o desnivelamento do piso da cozinha. Ela se jogaria outra vez no chão.

Estaria nosso lar, doce lar, infestado por cascudas? Sem piscar, abocanhei o verme. Sim, porque inseto é aranha, formiga, grilo. Barata, não. E-c-a!

Pela primeira vez em oito anos, eu tinha de me relacionar com aquele treco nojento. Que ao menos fosse breve.  Mordi com vontade, para exterminar, sem dó. Esperei pelo ‘creck’, mas as minhas papilas gustativas se depararam com uma textura firme e macia…

E, ó! A barata havia se perfumado com queijo gorgonzola! Era para se comer de joelhos. Em pequenos nacos…  

Acordei com um grito.  

De castigo no quintal pelo resto da noite, pensava com a minha coleira que o mundo é tremendamente injusto. Dei o meu melhor. Agi como um cão de guarda. Praticamente um pastor alemão treinado com requinte.

E, por causa de uma reles mordidinha na barata errada, teria de amargar o isolamento por horas a fio.  

Mas não sou mais como era antes.