Lora teme por nossa fama na cidadela. Dois homens mordidos em menos de dez dias. Coisa do Igor. Eu, a mestiça, não me sujo por tão pouco. Tomo conta da casa, lato para todos os transeuntes, motos, bicicletas. Corro para pegar urubus, garças e barcos. Felinos, os meus prediletos, ainda não tive a pata, mas é questão de tempo. Já vi iguanas no quintal, pretendo experimentá-los em breve.
Estava muitíssimo bem na fita. Até hoje.
Tomei banho pela manhã – contrariada, mas ao menos não fugi correndo ensaboada e pulei no sofá, como o branco.
Secava meu sedoso pêlo ao vento, na varanda, e observava o movimento na rua, quando a Lora nos ‘remanejou’ para a cozinha, onde, para variar, ela esfregava tudo.
Um parêntese: não entendo essa súbita mania de limpeza. Será que é TOC, aquela parada do Roberto Carlos? Porque parece que ela procura ouro, tamanha a dedicação. Súbito, o cacarejar. Levantei as orelhas, atenta.
Novo ruído. Sai em disparada para o quintal. Lá estava ela, a estúpida penosa sem noção, a mesma que havia me provocado semana passada, desfilando sobre a cerca do improvisado galinheiro.
O instinto caçador falou mais alto e desatei a correr, assoviando a música do Ultraje a Rigor: “eu tinha uma galinha que se chamava Sara Lee, um dia fiquei com fome, e tracei a Sara Lee…”
– Cauuuuu, párararararaaaa!!! – a Lora gritou. Saiiiiii galinha, sai! Igor, nããããoooooo!!!
Peguei logo a bípede pelo pescoço, porque com o branco na área, desajeitado como é, acabaria por ajudar o almoço a pular para dentro do cercado.
Galinha a cabidela, u-hu, como sonhei com esse momento! Sublime, no ponto, quentinha! Lora permaneceu estática.
– Quer um pedaço, mamãe? O peito, talvez, que é light?
Não cheguei a pronunciar a frase. Seu olhar horrorizado me dissuadiu de compartilhar a refeição. Minha dona, decididamente, não sabia o que fazer. Igor quebrou o gelo, aproximando-se do galinheiro.
Foi o suficiente para que ela nos colocasse de castigo.
O corpo
Meia hora depois, Lora permanecia ao lado do corpo. Esses humanos têm comportamentos sinistros. A carne esfriando e ela ali, num velório solitário. Vai acender vela e pôr flores, também? Fala sério…
Depois, percebi comovida que ela, simplesmente, não sabia o que fazer. Se tivesse dado alguns minutos, eu já teria resolvido. Meu estômago deu um pulo de satisfação com tal pensamento. Talvez se eu a lembrasse quantos cachorros sem dono passam fome nas ruas e tal… Pecado desperdiçar comida em pleno século 21.
Mas quando, como dizem por aqui. A galinha foi para o saco preto, depositado na calçada, endereçado a coleta de lixo. Dia seguinte, porém, a galinha preta, e só ela, sem saco nem nada, apareceu no meio da encruza.
Ao menos teve alguma utilidade.