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Archive for janeiro \30\+00:00 2008

Falta do que.

Segunda-feira. Estávamos no quintal dos fundos. Há horas. Sem nada para fazer. As galinhas, que habitam aquela área (infelizmente, em espaço demarcado e cercado) ressonavam desde o pôr-do-sol.  

O tédio era tanto que eu e o Igor gastamos horas refletindo sobre expressões idiomáticas, tais como dormir com as galinhas 

O gordo insistia: trata-se de agarrar o poleiro com os dedos dos pés, equilibrando (debilmente) o desajeitado corpão ao lado das penosas (Os dois adjetivos negritados acrescentei por minha própria pata, para dar mais veracidade ao depoimento.) 

Respirei fundo antes de retrucar: dormir com as galinhas é uma referência ao tempo, meu bem. É quando se dorme cedo, como esse bando de inúteis.  Usei de delicadeza, pois o colega sofre de melindre siberiano, magoa-se com o tom das palavras. Coisa de veado, cá entre nós, que começou depois que mamãe sumiu com as bolas dele. Mas essa é outra história. 

Era esse o quadro, enfim. Nada para fazer. Comecei a sentir uma vontade incontrolável de me divertir. Algo como…uma brincadeira coletiva.

PEGA-PEGA! Isso, isso! Gênio! Eu pegaria as galinhas! Não ia ter muita graça, verdade, pois elas estavam e pijama, mas… E daí? 

Conferi as horas. Passava das oito da noite. Lôra chegaria com muita fome, e eu poderia oferecer-lhe uma suculenta antecoxa. Meu moral iria para as alturas. Sim, pois acho que ela se zangou na investida anterior porque tracei a galinha de maneira compulsiva. Em minutos, o que sobrou foi bico, penas e rugas (que chamam, também, de pés-de-galinha).  

Sem falar no bônus: inclusão social. Eu, Igor e as galinhas, na maior integração, numa incrível atividade coletiva, mostrando o que é uma equipe que respeita as diferenças. (Leia-se: Eu sou maior do que você e vou te comer numa bocada só. É a lei da selva, fo-fa).  

Para botar Esopo no chinelo, percebe? 

Eu esquentava as patas para dar início à diversão quando Lôra chegou. 

Isso são horas? – resmungou Igor, agindo como chefe da família, mas, no fundo, lamentando a merenda perdida. 

segue…

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Passeios na orla são os meus preferidos, ainda que reclame do pique da Lora e da mestiça. Volto para casa me arrastando, mas lá, mantenho a pose. Até para não decepcionar meus fãs: elogios acontecem o tempo todo. Sou o único husky branco na cidadela, e, claro, o cachorro mais carismático da Amazônia.  

Hoje não foi diferente, e o calçadão estava bombado. Final de semana. Que fique claro, no entanto, que por mais que a cidade esteja ‘lotada’, a área ‘per capita’ é bastante generosa. Nada de gente se esbarrando, pelo contrário.  

Fomos interceptados por um sujeito com camiseta da prefeitura. 

Seus cachorros são grandes, a senhora tem de andar ali, no chão. O infeliz não poderia imaginar onde estava se metendo. 

Aqui não é chão? – retrucou Lora. 

É calçadão. 

– Como a prefeitura define chão? E calçadão? 

– Senhora, é que seus cachorros são grandes. 

– Qual é o tamanho máximo de cachorros que podem andar no calçadão? E onde está escrito? Qual é a lei? Blablablablablabla….  

Deitei para descansar. Estava estabelecida a confusão. Lora não abriria mão de um embate, ainda mais quando o que estava em jogo era nosso direito de ir e vir.  

Como era de se esperar, o homem não encontrava argumentos para rebater o afiado discurso sobre liberdade, capaz de dar inveja à Princesa Isabel.

Lora se empolgava cada vez mais. Aquilo começou a me entediar. Estava com sede, cansado. Queria ver os gols da rodada. Teve até clássico em São Paulo, jogo do Coringão. 

Levantei, ergui a pata e encharquei a calça do fiscal com minha urina quente e fétida. 

Seguimos a caminhada. Pelo calçadão.

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Sara Lee

Lora teme por nossa fama na cidadela. Dois homens mordidos em menos de dez dias. Coisa do Igor. Eu, a mestiça, não me sujo por tão pouco. Tomo conta da casa, lato para todos os transeuntes, motos, bicicletas. Corro para pegar urubus, garças e barcos. Felinos, os meus prediletos, ainda não tive a pata, mas é questão de tempo. Já vi iguanas no quintal, pretendo experimentá-los em breve. 

Estava muitíssimo bem na fita. Até hoje. 

Tomei banho pela manhã – contrariada, mas ao menos não fugi correndo ensaboada e pulei no sofá, como o branco.

Secava meu sedoso pêlo ao vento, na varanda, e observava o movimento na rua, quando a Lora nos ‘remanejou’ para a cozinha, onde, para variar, ela esfregava tudo.  

Um parêntese: não entendo essa súbita mania de limpeza. Será que é TOC, aquela parada do Roberto Carlos? Porque parece que ela procura ouro, tamanha a dedicação. Súbito, o cacarejar. Levantei as orelhas, atenta.

Novo ruído. Sai em disparada para o quintal. Lá estava ela, a estúpida penosa sem noção, a mesma que havia me provocado semana passada, desfilando sobre a cerca do improvisado galinheiro.

O instinto caçador falou mais alto e desatei a correr, assoviando a música do Ultraje a Rigor: “eu tinha uma galinha que se chamava Sara Lee, um dia fiquei com fome, e tracei a Sara Lee…”  

Cauuuuu, párararararaaaa!!! – a Lora gritou. Saiiiiii galinha, sai! Igor, nããããoooooo!!! 

Peguei logo a bípede pelo pescoço, porque com o branco na área, desajeitado como é, acabaria por ajudar o almoço a pular para dentro do cercado.  

Galinha a cabidela, u-hu, como sonhei com esse momento! Sublime, no ponto, quentinha!  Lora permaneceu estática.  

Quer um pedaço, mamãe? O peito, talvez, que é light?  

Não cheguei a pronunciar a frase. Seu olhar horrorizado me dissuadiu de compartilhar a refeição. Minha dona, decididamente, não sabia o que fazer.  Igor quebrou o gelo, aproximando-se do galinheiro.

Foi o suficiente para que ela nos colocasse de castigo.  

O corpo 

Meia hora depois, Lora permanecia ao lado do corpo. Esses humanos têm comportamentos sinistros. A carne esfriando e ela ali, num velório solitário. Vai acender vela e pôr flores, também? Fala sério… 

Depois, percebi comovida que ela, simplesmente, não sabia o que fazer. Se tivesse dado alguns minutos, eu já teria resolvido. Meu estômago deu um pulo de satisfação com tal pensamento. Talvez se eu a lembrasse quantos cachorros sem dono passam fome nas ruas e tal… Pecado desperdiçar comida em pleno século 21. 

Mas quando, como dizem por aqui. A galinha foi para o saco preto, depositado na calçada, endereçado a coleta de lixo. Dia seguinte, porém, a galinha preta, e só ela, sem saco nem nada, apareceu no meio da encruza.

Ao menos teve alguma utilidade.   

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Sangue latino

A noite corria solta e era coisa linda de se ver, a disposição do amigo. Que, efetivamente, não resolveu muita coisa nos eletrônicos, mas Lora parecia estar curtindo a conversa e tal.  

Relaxei, aconchegado aos pés do sujeito. Em alguns minutos eu já sonhava com ossos gigantes, suculentos e enfileirados, todos à minha disposição. Um, dois, quinze, uau! Respirei fundo para impregnar as narinas com o aroma de carne fresca.  Ajeitei o guardanapo no colo e abri lentamente a boca para saborear o primeiro acepipe… Hummmm. Fechei os olhos e cheguei mais perto das iguarias.

Foi então que tudo aconteceu.  

AHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! 

De novo, não! Como chefe de família, eu só tinha uma coisa a fazer. Salvá-la de um acidente ou de qualquer coisa que comprometesse terrivelmente os nossos passeios diários. Um arranhão, uma torção no tornozelo, ou até o desnivelamento do piso da cozinha. Ela se jogaria outra vez no chão.

Estaria nosso lar, doce lar, infestado por cascudas? Sem piscar, abocanhei o verme. Sim, porque inseto é aranha, formiga, grilo. Barata, não. E-c-a!

Pela primeira vez em oito anos, eu tinha de me relacionar com aquele treco nojento. Que ao menos fosse breve.  Mordi com vontade, para exterminar, sem dó. Esperei pelo ‘creck’, mas as minhas papilas gustativas se depararam com uma textura firme e macia…

E, ó! A barata havia se perfumado com queijo gorgonzola! Era para se comer de joelhos. Em pequenos nacos…  

Acordei com um grito.  

De castigo no quintal pelo resto da noite, pensava com a minha coleira que o mundo é tremendamente injusto. Dei o meu melhor. Agi como um cão de guarda. Praticamente um pastor alemão treinado com requinte.

E, por causa de uma reles mordidinha na barata errada, teria de amargar o isolamento por horas a fio.  

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Mas não sou mais como era antes.

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Cãorrespondências

Caro Igor,


 

A Ermínia, que não gosta da gente (?) me passou só um pedaço do seu e-mail, acaba quando você estava falando do calor. O barbudo me disse que aí é quente mesmo, ele quase caiu de costas quando abriram a porta do avião, ele estava no primeiro lugar e levou aquele bafo infernal na cara. Mas achou legal. Eu nunca viajei de avião como você, estou morto de inveja. Só ando de carro, e só com o barbudo, os outros não têm coragem de me levar. Também, eu apronto, né? Ainda agorinha comi metade do papel branco que tem lá na cozinha e destruí a outra metade. Mas o pessoal aqui é mal-humorado, ninguém achou graça, me puseram de castigo. Estou numa casa nova enquanto consertam tudo que eu já estraguei na casa velha. Aqui tem um quintal enorme, com ladrilhos lisos, não dá para correr, brincar de bola de tênis. E uns paredões enormes. Ontem apareceu um lagarto grandão, dei uma corrida nele, agarrei pela boca, dei umas duas mordidas no bicho, aí ele me enfiou a unha no nariz e saiu uma sangueira danada. Nem doeu, mas foi uma briga boa. Ele sumiu daqui. O barbudo me disse que aí tem uns lagartões muito maiores do que esse, chama jacaré, uma bocona de um metro. Tome cuidado, não entre nos rios nem nos igarapés, lá tem também uns peixinhos pequenos, chamados piranhas, se você cair no meio deles, zummm, em um minuto vira um monte de ossinhos sem carne nenhuma. O barbudo disse que a Lora foi aí trabalhar com índio, que coisa mais besta. Índio tem cachorro? Descubra isso e me conte. Se não tomar cuidado, eles são capazes de fazer churrasco de você Ouvi o barbudo dizendo que vai haver concurso para jornalista lá na ‘firma’. Você podia fingir que está muito doente, não aguenta o calor, aí a Lora vem de volta e pode ir trabalhar lá outra vez. Não naquela chatice do Portal, na Agência, o barbudo disse que agora é agência de verdade. Desmaia aí, engasga com uma espinha de peixe, quem sabe ela volta.

Uma lambidona no nariz. Tchau


Argos

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O quarto elemento

 A mesa da cozinha tomada por fios, chaves de fenda, sabão, detergente e espanador não deixou dúvidas. Lora estava ‘naqueles dias’, onde um grão de poeira parece ter a exata dimensão de um aterro sanitário. Frenética, esfregava prateleiras, apertava parafusos, estabelecendo uma relação de ‘quem manda aqui sou eu’. 

Olhei de esguelha para o quintal. O sol escancarado indicava perigo, eminentemente confirmado pela mangueira e toalha a postos. Deslizei para debaixo da cadeira, valendo-me do que poderia chamar de know-how, ou conhecimento adquirido.

Sem sombra de dúvida – até porque, se sombra houvesse, ela talvez estivesse menos agitada – eu seria submetido a uma das mais humilhantes situações para um husky siberiano: lavagem completa. 

Foi quando o amigo chegou. 

Ó de casa! Estava salvo.  

Por bons pares de horas, ele a manteve entretida com um rádio AM – que graça aquilo pode ter, em pleno século 21, não sei – e fazendo pequenos reparos nos nossos eletrônicos. 

A lua cheia dava graça quando…  

AHHHHHHH! Lora jogou-se no chão, como que atingida por um míssil.

Que foi? – perguntou, surpreso, o amigo. 

Uma ba-ba-ba-ba… 

Valei-me, São Francisco de Santarém. Era só o que faltava.

Tive ímpetos de gritar re-loooo-uuu, estamos na Amazônia, ba-by. Barata é fauna e grilo é flora. Mas, o amigo. Fiquei na minha. 

Não houve tempo para um segundo cochilo. 

AHHHHHHHHHHH! 

É um besouro, contemporizou o sujeito. Não faz nada. 

Custo a criar afeição por desconhecidos que me tratam como um cachorro, mas tive de me render à frieza do gajo: a rápida e certeira explanação sobre entomologia nos poupou de mais chiliques. 

– Você nunca brincou de radinho, quando criança? Com besouro dentro de uma caixa de fósforos? – completou, cenho franzido e tom ríspido, como convém nessas horas. 

Cara de bunda.

Tá achando que aqui é a Costa do Sauípe, murmurei, baixinho o suficiente para que ela não ouvisse, valendo-me de seu próprio repertório, que traduz o resort como ‘natureza produzida para cinema americano’.  

Algum tempo se passou até que levantei, tomei água e, num gesto de pura deferência, aconcheguei-me aos pés do amigo. Gostei daquele cara.    

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Hábitos.

A hospedaria é bastante agradável. Sinto falta do meu aparelho de jantar, reluzentes travessas de alumínio. Por enquanto, o ‘rango’ é servido em pratos improvisados, mas a ‘mistura’ (às vezes) compensa.  

Lora insiste em rações balanceadas, o que não é muito comum por aqui. Temos variado sabor, mas não marca – aquela que faz os comerciais ‘mais fofos’ da publicidade pet. Segundo as mulheres, que termos assim não estão listados no meu dicionÁUrio. 

Gosto de mergulhar de cabeça em novas experiências. Viver o dia-a-dia da região! Com a colaboração da Selma, responsável pela organização e limpeza do local onde estamos alojados, provei araçá, pitomba, banana grande – que nada deixa a desejar às nossas nanicas paulistas –, carambola.

Longe de seus olhos – e, pelo amor, da Lora, aquela carrasca – sobras de comida de galinha, lixo do banheiro etc. 

Mesmo em férias, mantenho algumas rotinas.

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Férias, enfim.

Eu sempre tive uma vida tranqüila. Comida balanceada, acrescida de frutas e legumes frescos. Morei em uma grande metrópole, com direito a banhos mornos semanais, sofá próprio, longas caminhadas diárias em boa companhia. Durante minha infância e juventude, conheci boa parte do Brasil. Escalei montanhas, participei de churrascos inusitados, freqüentei praias desertas e até outras que proibiam a minha presença. Ela sempre deu um jeito, ainda que os nossos passeios acontecessem nas madrugadas. O tempo das aventuras sempre me pareceu correto. Finais de semana, feriados prolongados, férias, voltávamos antes que o ar puro resultasse em alergia.Durante oito anos, fui um cão urbano. Tal experiência garantiu invejável tranqüilidade no aeroporto, quando aguardei, pacientemente, que ela enxugasse as lágrimas, implorasse cuidados aos carregadores e se dirigisse à própria casinha. Após a decolagem, a outra, a mestiça, perguntou se eu tinha alguma idéia do nosso destino. O calmante e os brinquedos providenciados por nossa dona não surtiram o efeito desejado na vira-lata, que tentou — em vão e durante toda a viagem — destravar o cadeado de sua caixa de transporte. Aninhado em meu ‘sofá de viagem’, tentei aliviar o clima lembrando a frase da Lora nas últimas semanas: ou nós três, ou nenhum de nós.  Bocejei longamente, estiquei as patas e relaxei. A movimentação das últimas semanas, a carona dos meus avós e a presença de amigos no aeroporto só podia ser sinônimo de férias inesquecíveis.   

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