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Archive for maio \20\+00:00 2008

Terceirinho

Queria começar esse e-mail me apresentando, mas eu mesmo não sei como chamo. Atendo por “vem”, “Totó”, “Costelinha”, “Terceirinho”, assobios – se forem daquela que escolhi pra ser minha dona.

 

Sou um cachorro de rua. Apanhei um bocado, principalmente de bêbados, homens de chapéu e motoqueiros. Passei muita fome, competi com os urubus pra descolar uns restos no lixo, tomei água de esgoto e, acho que por tudo isso, adoeci.

 

Quando não tinha mais forças para andar, deitei meus ossos numa calçada em Santarém, minha terra natal. Vez ou outra, me arrastava até um coberto, por causa da chuva.  

 

Passei despercebido por bastante tempo. Dureza, gaulera, pior que ser maltratado é sentir no lombo a indiferença. Até ser enxotado é mais legal, faz o sangue correr nas veias. Agora, ficar “na sombra” … É jogo duro.

 

Mas daí, um dia, fui “descoberto” por uma cachorra muito legal, que virou minha melhor amiga. Ela ficou me cheirando e abanando o rabo. Eu, que deveria estar no auge dos hormônios – não tenho nem um ano – não tive forças nem pra dar uma piscadinha. E olha que é uma tremenda cachorra, preta, pêlo brilhante. Tentei ler seu nome no coração gravado na coleira, mas meus olhos estavam fracos como seu eu fosse um avozinho.

 

Sua dona estava do outro lado da rua com um gordão branco – primeira vez que vi urso na Amazônia – e, como a Cau (esse é o nome da bonitona) não atendia aos seus chamados, veio ver o que tinha rolado.  

 

Falou algumas palavras que não entendi – só conhecia chutes e pauladas – mas pareciam bonitas como o sol quando nasce no rio Tapajós. Voltou mais tarde com um pratinho de comida. E no dia seguinte, e no outro, e no outro.

 

Eu estava fraco de fome. Foram vários dias e refeições até que eu conseguisse levantar e acompanhá-la até sua casa, distante não mais do que um quarteirão. Tive de ficar do lado de fora, em frente ao portão, não que ela ligasse pra sujeira ou minha péssima aparência, mas o urso, né. Urso come cachorros. Senão, tenho certeza de que ela teria me convidado pra entrar.

 

O tempo foi passando e melhorei. Virei o guardião da casa. Dormia de dia e, à noite, vigiava com vontade. Passei a latir e colocar pra correr aqueles que antes me judiavam. Os vizinhos gostaram tanto do “serviço” que passaram a me tratar com consideração.

 

Sábado passado, dei um vacilo. Invoquei com uns cabras que faziam algazarra na madruga e botei pra correr, mas um, mesmo bêbado, conseguiu acertar uma sapatada. Meu nariz doeu e sangrou muito. O meu corpo todo ficou vermelho, parecia que eu tinha enfrentado leões.

 

Lôra acordou cedo, ia viajar a trabalho, e o silêncio na rua era tanto que escutei o salto que deu seu coração ao me ver naquele estado, digamos, lastimável.

 

 – Quem fez isso com você, Totozinho?

 

Quis dizer que não tinha importância, são ossos do oficio de vigilante. Doía, é verdade, mas doía mais ver seus olhos marejados e a tristeza com a maldade humana. Jurei não latir pra ninguém nas horas seguintes se ela parasse de chorar. Como eu sangrei muito, já estava cercado por urubus, e, pensando bem, era mesmo uma cena deplorável.

 

Ela acordou a vizinha – gente boa, também, dá uma força nesses assuntos caninos – e as duas conversaram sobre médico ou algo assim, mas nenhum veio me ver. Cá entre nós, eu teria me escondido, imagina se deixaria alguém chegar perto de mim sem ela por perto. Tenho medo. Medo é uma espécie de espinho na pata, a gente se acostuma com a dor, mas ele está lá, pra lembrar que, um dia, pisamos em um terreno que deixou marcas.

 

Aproveitei a chuva da tarde pra me lavar, e quando ela chegou, tardão na noite, e me viu legal, fez tanta festa que acho que até a lua sorriu!

 

Tossi a noite toda, e hoje fomos a um lugar onde as pessoas todas se vestiam de branco. Um homem de bigode me pegou no colo e falou mansinho como ela. Ainda tremo nas bases com situações novas, mas Lôra permaneceu ao meu lado, até na hora do banho. Disse que não sabia como é que tanta sujeira cabia num cachorro do meu tamanho. Exagerada. :o)

 

Tomei muitas injeções. Vermífugo, pra combater a tosse (tantos vermes me deixavam com náuseas o tempo todo), antibiótico por causa do chutão no nariz, vitaminas. O homem de branco disse que era tudo pra dar uma “arribada”.

 

Fez exame de sangue, também, e falou da suspeita de algo com um nome estranho* que fez Lôra chorar novamente, mas disse que só com o resultado em mãos é que dá pra ter certeza.

 

Quando ele perguntou se, mesmo assim, ela queria cuidar de mim (o que custaria vários dinheiros), senti o mó orgulho. Sua resposta, nariz empinado, foi clara.

 

– É pra isso que eu e o senhor estamos aqui. Faremos de tudo, e se ele morrer, será com dignidade.

 

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